quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A poesia no período trovadoresco
Ao ler um texto poético desse período, não podemos ter em mente a tradição moderna e o que hoje entendemos por poesia. A poesia não era escrita para ser lida por um leitor solitário. Era poesia cantada (daí o nome cantiga, que passaremos a usar de agora em diante), geralmente acompanhada por um coro e por instrumentos musicais. Seu público não era, portanto, constituído de leitores, mas de ouvintes.
Assim, devemos sempre considerar as cantigas como poesia intimamente ligada à música, própria para apresentações coletivas.

Chamamos de poesia trovadoresca à produção poética, em galego-português, do final do século XII ao século XIV. Seu apogeu ocorre no reinado de Afonso III, pelos meados do século XIII.

Os Cancioneiros
Só tardiamente (a partir do final do século XIII) as cantigas foram copiadas e colecionadas em manuscritos chamados cancioneiros. Três desses livros, contendo aproximadamente 1680 cantigas, chegaram até nós:
• o Cancioneiro da Ajuda
• o Cancioneiro da Vaticana
• o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa

Os Autores
Os autores das cantigas são chamados trovadores. Eram pessoas cultas, quase sempre nobres, contando-se entre eles alguns reis, como D. Sancho I, D. Afonso X, de Castela e D. Dinis. Nos cancioneiros que conhecemos estão reunidas as cantigas de 153 trovadores.

Os Intérpretes
As cantigas compostas pelos trovadores eram musicadas e interpretadas pelo jogral, pelo segrel e pelo menestrel, artistas agregadas às cortes ou que perambulavam pelas cidades e feiras. Muitas vezes o jogral também compunha cantigas.
Os Gêneros
As cantigas podem ser classificadas em:
1. Gênero lírico – cantigas de amigo
– cantigas de amor
2. Gênero satírico – cantigas de escárnio
– cantigas de maldizer

Características das Cantigas
• Língua: galego-português;
• Tradição oral e coletiva;
• Poesia cantada e acompanhada por instrumentos musicais, colecionada em cancioneiros;
• Autores: trovadores;
• Intérpretes: jograis, segréis e menestréis;
• Gêneros: lírico (cantigas de amigo, cantigas de amor) e satírico (cantigas de escárnio, cantigas de maldizer).

O Gênero Lírico: cantigas de amigo e cantigas de amor
Cantiga de amigo

Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo?
E ai Deus, se verra cedo!

Ondas do mar levado,
Se vistes meu amado?
E ai Deus, se verra cedo!

Se vistes meu amigo?
o por que eu sospiro?
E ai Deus, se verra cedo!

Se vistes meu amado?
por que ei gram coidado?
E ai Deus, se verra cedo!
Martim Codax

Características das cantigas de amigo

Voz lírica feminina
A principal característica distintiva das cantigas está na voz lírica: na cantiga de amigo é a mulher quem fala; na cantiga de amor, o homem. Mas vale lembrar que o autor é sempre um homem, o trovador.

Expressão da vida campesina e urbana
A cantiga de amigo reflete a sensibilidade, os problemas e a visão de mundo das populações desfavorecidas, que trabalham no campo e na cidade.
Realismo
A temática do sofrimento amoroso desenvolve-se a partir de uma perspectiva realista, isto é, de fatos comuns da vida cotidiana, como a saudade do amigo ausente, o medo de que não retorne da guerra, os preparativos para encontrá-lo na romaria, ou no baile, etc. Na cantiga de Martim Codax, a moça dirige-se às ondas da baía de Vigo, pedindo notícias do amigo que partiu pelo mar.

Simplicidade temática e formal
Como pequenos e singelos quadros sentimentais, as cantigas de amigo utilizam estrutura simples, feita de versos alternadamente repetidos e refrão, para apresentação em coro ou para o acompanhamento da dança. Chamamos essa estrutura repetitiva de paralelismo.

Origem popular
Todas essas características, que fazem a simplicidade desse gênero, estão ligadas à sua origem. As cantigas de amigo são o resultado da evolução de tradições de canto popular, folclórico, da Península Ibérica.

Cantiga de amor

Quer’eu em maneira de proençal
fazer agora um cantar d’amor,
e querrei muit’i loar mia senhor
a que prez nem fremosura nom fal,
nem bondade; e mais vos direi em:
tanto a fez Deus comprida de bem
que mais que todas las do mundo val.

Ca mia senhor quizo Deus fazer tal,
quando a fez, que a fez sabedor
de todo bem e de muit gram valor,
e com tod’est[o] é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bom sem,
e desi nom lhi fez pouco de bem
quando nom quis que lh’outra foss’igual.

Ca em mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad’e loor
e falar mui bem, e riir melhor
que outra molher; desi é leal
muit’, e por esto nom sei oj’eu quem
possa compridamente no seu bem
falar, ca nom á, tra-lo seu bem, al.
D. Dinis

Características das cantigas de amor

Voz lírica masculina
Nas cantigas de amor, a voz lírica é sempre masculina.

Expressão da vida aristocrática
Com as convenções do amor cortês, as cantigas de amor refletem o refinamento da vida palaciana, em sua ambientação aristocrática e culta.
Convenções do amor cortês
1. A idealização – A mulher aparece sempre idealizada. Nas cantiga de D. Dinis, por exemplo, a voz lírica louva as qualidades da amada: formosura, bondade, lealdade, honra, desenvoltura ao falar, discrição ao rir. Deus a fez tão cheia de qualidades que ela vale mais que todas as outras do mundo.
2. A vassalagem amorosa – Com esta convenção da linguagem amorosa, desenvolve-se o tema do amor impossível. A dama idealizada é alçada à posição de senhora (observe na cantiga a expressão mia senhor) e o homem se rebaixa à condição de seu vassalo.
3. A coita – Esta palavra de origem galego-portuguesa significa dor, o sofrimento causado pela não correspondência amorosa. Nas cantigas de amigo nem sempre a coita é o tema, mas nas cantigas de amor é praticamente o único.
4. Origem provençal – A Provença, região sul da França, foi o centro irradiador da poesia trovadoresca. Podemos dizer que a cantiga de amor é uma adaptação simplificada e empobrecida de um gênero da poesia provençal, a canso.

O Gênero Satírico: cantigas de escárnio e de maldizer
As cantigas satíricas apresentam interesse sobretudo histórico. São verdadeiros documentos da vida social, principalmente da corte. Fazem ecoar reações públicas e certos fatos políticos; revelam detalhes da vida íntima da aristocracia, dos trovadores e dos jograis, trazendo até nós os mexericos e os vícios ocultos da fidalguia medieval portuguesa.
Enquanto as cantigas de escárnio utilizam a ironia e o equívoco para realizar mais indiretamente essas zombarias, as cantigas de maldizer são sátiras diretas. Daí sua maior virulência, o emprego mais freqüente de palavrões (em geral os mesmos que se usam até hoje) e a abordagem mais desabusada dos vícios sexuais atribuídos aos satirizados.
A diferença entre esses dois tipos de cantiga é, portanto, apenas relativa. Freqüentemente a classificação dos textos é ambígua. O próprio significado das palavras escárnio e maldizer pode deixar mais clara essa diferença entre os dois tipos de sátira:

• escárnio: zombaria, menosprezo, desprezo, desdém;
• maldizer: (verbo) praguejar contra; (substantivo) maledicência; difamação.

Cantiga de escárnio
De vós, senhor, quer’eu dizer verdade
e nom ja sobr’[o] amor que vos ei;
senhor, bem [moor] é vossa torpidade
de quantas outras eno mundo sei;
assi de fea come de maldade
nom vos vence oje senom filha dum rei.
[Eu] nom vos amo nem me perderei,
tu vos nom vir, por vós de soidade.
[...]
Pero Larouco
Cantiga da Ribeirinha

No mundo nom me sei parelha
mente me for como me vai,
ca ja moiro por vós e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia.
Mao dia me levantei
que vos entom nom vi fea!

E, mia senhor, des aquelha
me foi a mi mui mal di’ai!
E vós, filha de dom Paai
Moniz, e bem vos semelha
d'aver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós ouve nem ei
valia d’ua Correa.
Pai Soares de Taveirós

Considerada por alguns como a mais antiga das cantigas galego-portuguesa, este texto desafia a interpretação dos estudiosos. Seu sentido continua bastante obscuro. Não se pode concluir nem mesmo se se trata de uma cantiga de amor ou de escárnio.

Testes de Vestibular

01. (UFMA – MA) Texto:

Hun tal home sei eu, ai, bem talhada,
que por vós tem a sa morte chegada;
vedes quem é e seed’em nembrada:
eu, mia dona!

Hun tal home seu eu que preto sente
de si morte chegada certamente:
vedes quem é e venha-vos em mente:
eu, mia dona!

Hun tal home sei eu, aquest’óide:
que por vós morre, e vo-lo en partide;
vedes quem é, non xe vos obride:
eu, mia dona!
Cancioneiro d’el-Rei D. Dinis

No poema acima, o final dos últimos versos – mia dona! – caracteriza um cantar medieval, que se classifica como:
a) cantiga satírica;
b) cantiga de escárnio;
c) cantiga de amigo;
d) cantiga de maldizer;
e) cantiga de amor.

TROVADRISMO

O TROVADORISMO (1189 (ou 1198?) – 1385) Cantiga

Dizia la fremosinha:
“ai, Deus, val!
Com’estou d’amor ferida!
ai, Deus, val!”

Dizia la bem talhada:
“ai, Deus, val!
Com’estou d’amor coitada!
ai, Deus, val!

Com’estou d’amor ferida!
ai, Deus, val!
Nom vem o que bem queria!
ai, Deus, val!

Com’estou d’amor coitada!
ai, Deus, val!
Nom vem o que muit’amava!
ai, Deus, val!”
D. Afonso Sanches

Vocabulário
Fremosinha – formosinha
Ai, Deus, val! – ai, valha-me Deus!; ai, Deus me ajude!
Bem talhada – bem-feita, elegante, bonita
Coitada – infeliz, cheia de sofrimento amoroso

D. Afonso Sanches – Trovador do final do século XIII e início do VIV. Filho bastardo do rei D. Dinis com sua amante favorita, D. Aldonça Rodrigues da Telha. Deixou-nos 15 cantigas, nas quais, segundo J. J. Nunes, se revelou verdadeiro poeta.

Você deve ter achado muito estranha a linguagem desta cantiga. Não é para menos: ela foi composta há quase sete séculos. Nessa época (século XIV), a língua portuguesa ainda não existia. Falava-se em Portugal o galego-português, que, no século XV, dará origem a duas línguas distintas: o galego e o português.
Uma vez decifrado o vocabulário, fica muito evidente a principal característica da cantiga: a simplicidade. Seu autor, o trovador D. Afonso Sanches, era filho bastardo do rei D. Dinis, que também era trovador. Sua ascendência nobre não impediu D. Afonso Sanches de compor uma cantiga nos moldes da tradição popular.

A reação do leitor do século XX diante dos textos medievais é dupla e contraditória. Em primeiro lugar, no caso dessa cantiga, estranhamos a própria língua, o galego-português. Freqüentemente, entretanto, a estranheza que sentimos diante do texto medieval é muito mais profunda. A voz que conta os sofrimentos